Neurociência precisa de comportamento
Sobre uns trechos legais do artigo Neuroscience Needs Behavior: Correcting a Reductionist Bias (A neurociência precisa do comportamento: Correção de um viés reducionista).
Uma analogia computacional: processador x processos
“A questão central que abordamos aqui é se os processos que regem o comportamento são melhor inferidos a partir da análise dos processadores. Numa ironia simpática, a analogia da ciência da computação completou o círculo com um estudo provocador que aplicou que aplicou numerosas técnicas de neurociência a um único microprocessador (análogo a um cérebro) numa tentativa de compreender como este controla três jogos de vídeo clássicos (análogos a comportamentos) (Jonas e Kording, 2017).
Crucial para a experiência foi o facto de a resposta era conhecida a priori: as operações do processador podem ser desenhadas como um fluxograma algorítmico. O resultado preocupante foi que a realização de neurociência intervencionista no processador não podia explicar como o processador funcionava.”
Analogia muito boa: assim como pode ser melhor entender um software (processos) em si mesmo e não estudando o hardware (processadores)…pode ser melhor estudar o comportamento (processos) em si e não pelo sistema nervoso (processadores).
Não é novidade. Desde o início da psicologia cognitiva (meados dos anos 60), já se falava que para entender o software (cognição) não era necessário estudar o hardware (cérebro). Em grande parte, isso é verdade. Porém, o software é apenas um dos níveis de explicação, e mesmo nesse nível muita coisa fica difícil de entender sem referência ao hardware (cérebro). As analogias cérebro-computador são muito legais, mas tem seus limites…
Correlações entre atividade neural e comportamento
Isso aqui também é muito importante: a relação entre atividade neural e comportamento pode não ser tão clara (e até muito confusa). Exemplos:
- um mesmo padrão de atividade neural pode gerar dois comportamentos diferentes
- dois padrões diferentes de atividade neural podem gerar o mesmo comportamento
- pode haver ruído: pode ser que nem toda atividade neural observada tenha a ver com o comportamento em questão.
Os 3 níveis de análise de David Marr
“Marr adoptou uma posição forte sobre a inadequação de uma abordagem estritamente neurofisiológica para a compreensão: ”tentar compreender a percepção através da compreensão dos neurônios é como tentar tentar compreender o vôo de um pássaro estudando apenas as penas. Simplesmente não pode ser feito” (Marr, 1982/2010) (Figura 2).
A principal intuição de Marr era que é muito mais difícil inferir, a partir do hardware neural (ou implementação; nível 3), qual o algoritmo (nível 2) que o sistema nervoso está a empregar, em comparação com chegar a a ele através de uma análise do problema computacional (nível 1) que está está a tentar resolver.
A principal objeção de Marr à tentativa de compreender o cérebro através do registo dos neurônios era que isso só conduzia a descrições em vez de explicações. Uma descrição da atividade e das ligações neuronais não é sinônimo de saber o que estão a fazer para causar o comportamento. Mesmo quem acredita piamente no trabalho realizado ao nível dos neurônios e das moléculas (o nível de implementação) admitem o argumento de Marr (Bickle, 2015).
Uma analogia que ajuda a perceber este ponto é a compreensão do jogo de xadrez. A compreensão do jogo não depende de saber alguma coisa sobre o material de que é feito o tabuleiro ou as peças de xadrez. De facto, Marr sugeriu que os pormenores do sistema nervoso podem nem sequer ter importância.”
Segundo o Marr, se queremos entender que algoritmo nosso sistema nervoso está usando, pode ser mais fácil olhar para o problema a ser resolvido do que para o hardware neural (as melecas do sistema nervoso). Seria como o xadrez: o material de que o tabuleiro ou peças são feitos é irrelevante, você pode analisar o jogo pelas regras dele.
Observações:
1. David Marr foi um neurocientista e psicólogo muito importante, bem influente em neurociência computacional, por exemplo.
2. As analogias e metáforas computacionais são muito presentes na psicologia (assim como em todas as ciências cognitivas).
“Num interessante paralelo histórico com o argumento que aqui apresentamos aqui, a historiadora da ciência Lily Kay descreveu o modo como a disciplina da biologia molecular também surgiu da atribuição de um prémio na tecnologia e na sua aplicação a sistemas modelo simples (Kay, 1996). Ela cita com preocupação a frase de Monod, “O que é verdade para a bactéria é verdade para o elefante” (Kay, 1996, p. 5).
Aqui advertimos de forma semelhante contra a ideia de que o que é verdade para o circuito é verdade para o comportamento. A frase de Monod ecoou até aos dias de hoje com o argumento de que a biologia molecular e as suas técnicas devem servir de modelo para a compreensão em neurociência (Bickle, 2016). Nós discordamos desta visão reducionista totalizante, mas tomamo-la como prova de que fé excessiva na biologia molecular e celular pode ser parcialmente a culpa pelo atual predomínio de explicações intervencionistas na neurociência.”
“A neurociência orientada pela técnica poderia ser considerada um exemplo do que é conhecido como o viés de substituição: quando confrontados com uma pergunta difícil, respondemos frequentemente a uma mais fácil, geralmente sem reparar na substituição” (Kahneman, 2011, p. 12).
A tentativa de explicar tudo com um único nível ocorre em todos os níveis (biológico, psicológico, social…).
O que vale pra um circuito neural não vale pra todo o organismo. Além disso, da soma das partes emerge algo diferente das partes (como bem demonstrado pela Psicologia da Gestalt)
De novo, isso tem seus limites. Uma redução ao psicológico/comportamental, sem referência ao sistema nervoso, deixa muita coisa faltando. Assim como neurociência precisa de comportamento, comportamento precisa de neurociência. São níveis diferentes de uma mesma coisa.
A falácia mereológica
O erro a seguir é muito comum e relativamente famoso: a falácia mereológica.
“Tendência de atribuir propriedades psicológicas à atividade de um único neurônio que só pode ser atribuída de forma sensata a um organismo inteiro em comportamento, é conhecida como falácia mereológica – uma falácia pela qual nós, neurocientistas, continuamos a cair, embora a conheçamos desde o livro De Anima de Aristóteles”
Exemplo de falácia mereológica: quando dizemos que neurônios espelho entendem outra pessoa ou que o cérebro quer. Quem entende e quer é o organismo inteiro (que inclui cérebro e neurônios, mas não se reduz a eles).
Estudo de um caso real
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