Relação mente-cérebro: Os 5 princípios de Kandel
Eric Kandel é um neurocientista muito influente. Ele foi vencedor campeão de um prêmio Nobel por suas pesquisas sobre a base fisiológica do armazenamento da memória. Além disso, é autor do mais famoso (e mais pesado) livro introdutório sobre neurociências.
Estava eu pesquisando para o trabalho de conclusão de curso da especialização em neurociências quando me deparei, meio por acaso, com um artigo bem interessante dele. Vejamos:
(todos os negritos, itálicos e links são inserções minhas para melhorar sua experiência)
Os 5 princípios de Kandel sobre a relaçãa mente-cérebro
“Esta estrutura pode ser resumida em cinco princípios que constituem, de forma simplificada, o pensamento atual dos biólogos sobre a relação da mente com o cérebro.”
Apesar de ser um artigo de 98, ainda tá beeem a frente do conhecimento médio que temos.
“Princípio 1. Todos os processos mentais, mesmo os processos psicológicos mais complexos, derivam de operações do cérebro. O princípio central deste ponto de vista é que aquilo a que vulgarmente chamamos mente é um conjunto de funções executadas pelo cérebro. As ações do cérebro estão subjacentes não só a comportamentos motores relativamente simples, como andar e comer, mas também a todas as acções cognitivas complexas, conscientes e inconscientes, que associamos ao comportamento especificamente humano, como pensar, falar e criar obras de literatura, música e arte. Como corolário, as perturbações comportamentais que caracterizam a doença psiquiátrica são distúrbios da função cerebral, mesmo nos casos em que as causas dos distúrbios são claramente de origem ambiental.”
Me sinto bem papagaio falando disso sempre, mas é uma questão tão fundamental que precisa ser repetida. Se é novidade para você, comece pelo erro de Descartes.
“Princípio 2. Os genes e os seus produtos proteicos são determinantes importantes do padrão de interconexões entre os neurónios no cérebro e dos pormenores do seu funcionamento. Os genes, e especificamente as combinações de genes, exercem assim um controle significativo sobre o comportamento. Como corolário, um componente que contribui para o desenvolvimento das principais doenças mentais é genético.”
Não é atoa que existe um campo de pesquisa chamado genética comportamental. Se você é mais da parte “humanas” da Psicologia, isso já pode te fazer virar os olhos. Mas calma, o próximo princípio já explica melhor isso.
“Princípio 3. Os genes alterados não explicam, por si só, toda a variância de uma determinada doença mental grave. Os fatores sociais ou de desenvolvimento também contribuem de forma muito importante. Tal como as combinações de genes contribuem para o comportamento, incluindo o comportamento social, também o comportamento e os fatores sociais podem exercer ações sobre o cérebro, retroalimentando-o para modificar a expressão dos genes e a função das células nervosas. A aprendizagem, incluindo a aprendizagem que resulta em comportamento disfuncional, produz alterações na expressão dos genes. Assim, toda a “educação” (nurture) é expressa em última instância como “natureza” (nature).”
Essa é uma solução para a eterna questão nature x nurture, cultura x biologia, inato x aprendido…A real é que caímos nessa falsa dicotomia sem perceber. Por isso uma galera revira os olhos quando se fala de aspectos biológicos em psicologia – a tendência média é acreditar que falar de biologia é descartar sociedade e cultura, ser determinista e outras coisas piores. Mas não é assim.
“Princípio 4. As alterações na expressão gênica induzidas pela aprendizagem dão origem a alterações nos padrões das ligações neuronais. Estas alterações não só contribuem para a base biológica da individualidade, mas presumivelmente são responsáveis por iniciar e manter anormalidades de comportamento que são induzidas por contingências sociais.”
Aí, em aprendizagem, está incluída a psicoterapia. Veja mais abaixo.
“Princípio 5. Na medida em que a psicoterapia ou o aconselhamento são eficazes e produzem mudanças de longo prazo no comportamento, presumivelmente fazem-no através da aprendizagem, produzindo mudanças na expressão genética que alteram a força das conexões sinápticas e mudanças estruturais que alteram o padrão anatômico das interconexões entre as células nervosas do cérebro. À medida que a resolução da imagem do cérebro aumenta, deverá eventualmente permitir uma avaliação quantitativa do resultado da psicoterapia.”
E é por isso que eu caí nesse artigo. Meu tema de pesquisa na especialização é (por enquanto) algo como Efeitos da psicoterapia na neuroplasticiade em casos de ansiedade. Infelizmente ainda é estranho para muita gente, mas psicoterapia é um tratamento biológico, como o mesmo Kandel já disse.
Eu poderia parar por aqui. Porém, existe a tendência comum de achar que falar de biologia em psicologia é ser biologicista, reducionista etc. Por isso, acho válido deixar como bônus outro trecho, um pouco adiante:
“Todas as Funções da Mente Reflectem as Funções do Cérebro
Este princípio é tão central no pensamento tradicional da biologia e da medicina (e tem sido assim desde há um século) que é quase um truísmo e dificilmente precisa de ser reafirmado. Este princípio é o pressuposto básico subjacente à ciência neurológica, um pressuposto para o qual existe um enorme apoio científico. Lesões específicas do cérebro produzem alterações específicas no comportamento, e alterações específicas no comportamento reflectem-se em alterações funcionais caraterísticas no cérebro.
Visto desta forma, toda a sociologia deve, até certo ponto, ser sociobiologia; os processos sociais devem, a um certo nível, refletir funções biológicas. Apresso-me a acrescentar que a formulação de uma relação entre processos sociais (ou mesmo processos psicológicos) e funções biológicas pode não se revelar necessariamente muito perspicaz na elucidação da dinâmica social. Para muitos aspectos do comportamento grupal ou individual, uma análise biológica pode não ser o nível ideal ou mesmo um nível informativo de análise, tal como a resolução subatómica não é frequentemente o nível ideal para a análise de problemas biológicos.”
Esse é um contraponto obrigatório para não cairmos no neurorreducionismo. A Psicologia científica não é reducionista (do ponto de vista negativo) nem será reduzida à neurociência.
Inclusive, para muitos propósitos, a neurociência não ajuda em nada. Não é que ela seja inútil. Ela é fundamental e necessária para muita coisa. É que simplesmente a complexidade da realidade não admite ser explicada em um único nível de análise (biológico, psicológico, social…) ou por uma única disciplina. Em muitos casos, precisamos de outras disciplinas e olhar para outros níveis de análise que não o biológico. Lembre-se do elefante.
Um útlimo recurso do qual vou dispor, para dissipar toda antipatia com a biologia, é o Kandel em carne, osso e neurônios.
Olha como o veinho é simpático. Você acha que ele faria algum mal? (Claro que não!)
Referencias:
Kandel, E. R. (1998). A new intellectual framework for psychiatry. American journal of psychiatry, 155(4), 457-469.
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