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Transtornos mentais são transtornos cerebrais (mas não só!)

Um dos principais problemas ao se pensar em psicologia, a meu ver, é esquecer da biologia. É o que chamo de psicologia sem cérebro, um modo de pensar a psicologia ignorando o corpo.

A psicologia sem cérebro e sem corpo fala de fenômenos psicológicos como abstrações, entidades etéreas. Como desse jeito fica difícil entender os mecanismos por trás dos fenômenos psicológicos, vira um vale-tudo, uma terra sem lei, uma várzea.

Porque separamos mente e corpo, transtornos mentais podem ser facilmente considerados inexistentes, já quem “não dá pra ver”. É o que aconteceu por muito tempo (e ainda acontece) com a depressão, considerada “frescura”, “falta de trabalho”, “fraqueza” e sei lá mais o quê.

Por isso, uma das ideias mais importantes que defendo é a de psicologia corporificada. O que acontece com nós acontece no corpo. A biologia é meio para todos os eventos psicológicos. Isso é fundamental para dar materialidade aos fenômenos psicológicos.

O que a mente é, concretamente?

A mente é atividade do cérebro. Segue-se que transtornos mentais são transtornos cerebrais. Logo, a depressão é uma questão biológica.

Mas antes de você me rotular como um biologicista positivista neoliberal reducionista seguidor da lógica biomédica safado (se é que já não o fez), vamos ao que interessa aqui: os limites da perspectiva biológica.

Joel Gold (psiquiatra) e Ian Gold (neurocientista) (sim, dois biologicistas safados) responderam a pergunta “Que ideia científica está pronta para a aposentadoria?” com: “A doença mental nada mais é do que uma doença cerebral“.

Acompanhemos (com destaques meus):

“Em 1845, Wilhelm Griesinger, autor do mais importante livro de psiquiatria da época, escreveu: ‘que órgão deve necessariamente e invariavelmente estar doente onde há loucura? … Os fatos fisiológicos e patológicos mostram-nos que este órgão só pode ser o cérebro…‘ O truísmo de Griesinger é regularmente reiterado no nosso tempo porque expressa o compromisso básico da psiquiatria biológica contemporânea.”

Beleza.

A lógica do argumento de Griesinger parece incontestável: a doença mental grave tem de ter origem numa anormalidade fisiológica de alguma parte do corpo, e a única localização candidata plausível é o cérebro. Visto que a mente não é nada além da atividade do cérebro, a mente desordenada nada mais é do que um cérebro desordenado. É verdade. Mas isso não quer dizer que os transtornos mentais possam ser, ou serão, descritos pela genética e pela neurobiologia.”

Aí começa a ficar mais interessante, né? Eles fazem uma analogia muito boa:

“Os terremotos não são nada além dos movimentos de um vasto número de átomos no espaço, mas a teoria dos terremotos não diz absolutamente nada sobre os átomos, mas apenas sobre as placas tectônicas. “

Lembra quando falei sobre reducionismo na psicologia científica? Pois é.

“A melhor explicação científica de um fenômeno depende de onde os seres humanos reais encontram padrões compreensíveis no universo, e não de como o universo é constituído.”

Isso pode explicar porque tentamos reduzir tudo a uma área do conhecimento só, seja à biologia, seja à cultura. Como a educação é voltada para a especialização em uma área, vamos tender a olhar o universo com as lentes dessa área (já que é isso que temos). Por isso, outra das ideias que defendo: inter/multi/transdisciplinaridade. A psicologia mesmo é uma hub science por definição.

Talvez esse exemplo da biomedicina biomédica biomedicalizante ajude também:

“Não é uma ideia radical que a compreensão e o tratamento de distúrbios cerebrais às vezes tenham que ir além do crânio. O coração de um homem lança um êmbolo no cérebro. (…) A causa de sua doença cerebral não se originou ali, mas em seu coração. Seus médicos farão o que puderem para limitar maiores danos ao tecido cerebral e talvez até restaurar parte da função perdida devido à embolia. Mas eles também tentarão diagnosticar e tratar sua doença cardiovascular. (…) E eles não vão parar por aí. Eles vão querer saber sobre a dieta do paciente, regime de exercícios, nível de colesterol e qualquer histórico familiar de doença cardíaca.”

Uma doença cerebral (como o AVC) é uma doença cerebral…mas também não é. Se olharmos só para o local onde a doença ocorre, ok, é no cérebro. Mas quando pensamos em doenças, não estamos lidando com um cérebro no vácuo. É um cérebro inevitavelmente em interação contínua com o resto do universo.

Eles usam a esquizofrenia como exemplo de transtorno mental-cerebral-mas-não-só, um dos casos onde há maior carga genética (genética também não é determinismo biológico):

A doença mental grave também é uma agressão ao cérebro. Mas, tal como o êmbolo, por vezes pode originar-se fora do cérebro. Na verdade, a investigação psiquiátrica já nos deu pistas que sugerem que uma boa teoria da doença mental necessitará de conceitos que façam referência a coisas fora do crânio.

(…) A forma central da psicose, a esquizofrenia, é  a  doença cerebral psiquiátrica  por excelência . Mas a esquizofrenia interage com o mundo exterior, em particular, com o mundo social. Décadas de investigação deram-nos provas robustas de que o risco de desenvolver esquizofrenia aumenta com a experiência de adversidades na infância, como abuso e bullying. Os imigrantes correm cerca de duas vezes mais risco, tal como os seus filhos. E o risco de doença aumenta de forma quase linear com a população da sua cidade e varia com as características sociais dos bairros. Bairros estáveis ​​e socialmente coerentes têm uma incidência menor do que bairros mais transitórios e menos coesos.”

De modo nenhum é um cérebro numa cuba, né?

“Infelizmente, estes determinantes ambientais da psicose são largamente ignorados, mas proporcionam oportunidades para intervenções úteis. Ainda não temos uma terapia genética para a esquizofrenia, e os medicamentos antipsicóticos só podem ser usados ​​após o fato e não são tão bons quanto gostaríamos que fossem. A Década do Cérebro produziu muitas pesquisas importantes sobre o funcionamento do cérebro, e a nova iniciativa BRAIN também o fará. Mas quase nada disso ainda ajudou (ou é provável) que ajude os pacientes que sofrem de doenças mentais ou aqueles que os tratam. Mas a redução do abuso infantil e a melhoria da qualidade do ambiente urbano podem muito bem impedir que algumas pessoas desenvolvam uma doença psicótica.”

Seria bom se desse para tirar o cérebro, dar uma arrumada nele e colocar de volta, né? É ótimo quando existem opções de intervenção mais diretas, como os medicamentos. Porém…não dá para resolver tudo assim.

“É claro que, seja qual for o aspecto dos determinantes sociais da psicose que os torna fatores de risco, eles devem ter algum efeito a jusante no cérebro, caso contrário não aumentariam o risco de esquizofrenia, mas eles próprios não são fenómenos neurais, tal como fumar não é um fenómeno biológico porque é uma causa de câncer de pulmão. A teoria da esquizofrenia terá de ser mais ampla, portanto, do que a teoria do cérebro e seus distúrbios.”

Tudo o que nos afeta, nos afeta biologicamente, já que acontece no nosso corpo. Mas isso não quer dizer que todas as causas são biológicas.

O fato de uma teoria da doença mental fazer referência ao mundo exterior ao cérebro não é mais surpreendente do que o fato de a teoria do câncer ter de fazer referência ao fumo do cigarro. E, no entanto, o que é comum na investigação do cancro é radical na psiquiatria. Chegou a hora de expandir o modelo biológico do transtorno psiquiátrico para incluir o contexto em que o cérebro funciona. Ao compreender, prevenir e tratar as doenças mentais, continuaremos, com razão, a examinar os neurônios e o DNA das pessoas afetadas e não afetadas. Ignorar o mundo ao seu redor seria não apenas um mau remédio, mas também uma má ciência.”

Pensando bem, é até bizarro que uma ideia tão simples possa parecer tão radical. Mas, somos seres abstratores que perdem o contato com a realidade concreta muito fácil.

Se você for em um curso superior de psicologia ou de vários outros campos da saúde, vai ouvir várias vezes o termo biopsicossocial. Bonito, né? Mas a maioria de nós não parece realmente incorporar essa ideia. Pode ser um caso de raciocínio seletivo e contextual (“ah, só sabia fazer essa conta com laranjas, não com maças”).

O que você pensa a respeito? Pensa com o cérebro ou com o mundo fora dele?

About the Author

Tiago Azevedo
Tiago Azevedo

Doutorando, mestre e graduado em Psicologia. Especializando em Neurociências. Vi na internet o melhor meio possível para conversar sobre a mente e o comportamento humano. Acredito que o conhecimento científico pode (e deve) ser compartilhado, e não ficar limitado a laboratórios de pesquisa e consultórios de psicoterapia. Há anos trabalho no "Universo da Psicologia", um projeto de divulgação da Psicologia em várias plataformas (blogs, Youtube, podcast, redes sociais etc) que soma mais de 200.000 seguidores.

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