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A Psicologia explica mesmo?

A Psicologia pode ser definida como uma ciência da mente e do comportamento. Um dos propósitos da ciência é explicar. Logo, a psicologia busca explicar a mente e o comportamento. Mas será que ela explica mesmo?

 

question, quiz, think
Photo by Tumisu on Pixabay

Mario Bunge foi um físico e filósofo da ciência. Em seu livro Evaluating Philosophies, ele escreveu um maravilhoso capítulo sobre psicologia, onde dá um bela demonstração de sua capacidade de pensamento, de alguns problemas da psicologia e de algumas soluções.

Toda ciência começa descrevendo fatos em algum setor da realidade. E uma ciência amadurece na medida em que explica o que descreveu.

 

Por exemplo, Newton explicou por gravitação e inércia as órbitas planetárias que Kepler havia descrito; Spallanzani explicou os “fatos da vida” pela união de um ovo com um espermatozoide;

 

Todas as explicações acima envolvem apenas fatores materiais escrutáveis.

Os destaques em todas as citações são meus. Na citação acima, já começamos a visualizar um problema: como fica a mente nessa história de “fatores materiais”?

“Desde o seu nascimento, a psicologia vem explicando os fatos mentais de várias maneiras. A explicação mais simples de tais fatos envolve apenas outros fatos mentais, como quando dizemos que ela fez isso porque acreditava que era do seu próprio interesse (…). Mas tal descrição não explica nada, porque não envolve qualquer mecanismo transformando crença em ação. De fato, explicar um fato é desvelar o mecanismo subjacente.

 

Como passar da descrição à explicação em psicologia? Tal transição pode ser realizada substituindo a mente imaterial pelo cérebro, porque isso é o órgão da mente, e porque os mecanismos existem apenas em sistemas materiais.”

– Por que a pessoa atravessou a rua?

– Por que ela quis.

Crenças e desejos são explicações úteis. Ao contrário do que muita gente pensa (incluindo psicólogos antimentalistas), crenças e desejos NÃO são imateriais. São “algoritmos de compressão”, como diria Daniel Dennet. Permitem que falemos de forma fácil de enormes conjuntos de processos neurofisiológicos.

A diferença entre descrição e explicação é largamente discutida em filosofia. Podemos discordar do Bunge e afirmar que as descrições no nível mental são explicações. Mesmo assim, são explicações incompletas se não considerarmos os processos neurofisiológicos que estão por baixo delas.

Bunge continua, usando uma analogia: um instrutor de autoescola de “explica” que quando você pisa no pedal acelerador do carro, o carro acelera. Entre o pisar no pedal e o carro acelerar existem vários processos intermediários, um mecanismo.

“De maneira semelhante, a psicologia funcionalista lida com funções mentais (ou processos), como lembrar e imaginar, independentemente de seu ‘substrato’ material. Por exemplo, o funcionalista pode explicar um efeito placebo como causado por uma crença, ou gagueira ocasional como efeito de uma forte emoção. Uma representação clássica de tais explicações é feita por diagramas que consistem em caixas (funções) unidos por setas (conexões causais ou apenas sucessões). Por exemplo,

 

Percepção → Memória de curto prazo →  Memória de longo prazo
.
Deliberação → Decisão → Ação.

 

Assumir que tais diagramas são representações fiéis de proposições verdadeiras é suficiente? Não, porque são desencarnados: ignoram a definição de “processo” como mudança em uma coisa material. Em particular, os eventos mentais são mudanças no cérebro.”

Há quem defenda, em psicologia, a independência da mente em relação ao cérebro. Uma metáfora ajuda a entender esta posição:

O cérebro seria como o hardware e a mente seria como o software. Alguém que atua no nível do software – um programador, por exemplo – não precisa do hardware.

Em grande parte, isto é verdade. Mas podem surgir grandes problemas disso:

  • a ilusão de que a explicação no nível mental explica tudo.
  • a crença de que a mente É algo independente do cérebro, e não só algo que pode ser analisado independentemente do cérebro.
  • crença de que a mente é imaterial, uma coisa voando sei-lá-onde, uma terra sem lei.

Não é difícil imaginar que, a partir desses problemas, comecem a brotar infinitas explicações sobre a mente com absolutamente nenhuma base na realidade.

Mas essa limitação não existe apenas quando falamos em mente. Mesmo quando falamos apenas de comportamentos observáveis, estamos descrevendo (ou explicando, como queira) apenas uma parte do processo.

Falar que a pessoa atravessou a rua porque a luz do semáforo verde foi um estímulo é contar um pedaço da história, mas ainda não abrimos “a caixa-preta”.

“Imagine um físico funcionalista. Ele pode nos dizer, por exemplo, que o ar aquece quando o sol nasce; que coisas pesadas caem quando soltas; e que o trovão segue o raio. Mas ele não vai nos dizer por que essas associações acontecem. Física funcionalista é apenas física popular. (…)

 

A física científica, ao contrário, olha por trás das aparências: explica o aquecimento do ar pela luz do sol como efeito da absorção da luz pelas moléculas do ar; a queda dos corpos por sua interação com a Terra por meio de seus campos gravitacionais; e trovão pelas ondas de choque sonoras geradas por descargas elétricas entre nuvens.”

A partir deste exemplo da física, podemos imaginar porque a psicologia gera tantas “”explicações”” estranhas e descoladas do mundo real. Mas não precisa ser assim.

Explicar é desvendar mecanismos

 

Enquanto o conhecimento comum se limita a descrever fenômenos (aparências), a ciência os explica em termos de mecanismos mais ou menos ocultos, mas escrutáveis.

 

Portanto, se os cientistas tivessem ouvido os fenomenalistas, eles não teriam inventado física moderna. Em particular, eles não teriam inventado nem a física de campo nem física atômica, uma vez que os fenomenalistas negam a existência de campos e átomos para sendo inobservável.

 

Algo semelhante aconteceu na biologia, na psicologia e nas ciências sociais: eles têm explicado por meio de mecanismos o que a sabedoria popular toma como certo e muito mais.”

Aqui, Tio Mario oferece uma estupenda lista de exemplos (sério, essa lista é muito boa, atente-se):

1. A genética explica que nos parecemos com nossos ancestrais porque herdamos alguns de seus genes, em particular aqueles que regulam a morfogênese.

 

2. É assim que um mosquito nos encontra: um neurônio especializado em seu “nariz” detecta algum do CO 2 que exalamos, e gera um sinal que é transmitido através do cérebro dos insetos para suas “asas”, levando-o contra o vento para sua refeição – nós.

 

3. As memórias são configurações neuronais. Estes são inicialmente instáveis, mas ficam consolidadas quando o cérebro sintetiza certas proteínas que colam as conexões interneuronais – e é por isso que a repetição produz memorização.

 

4. O hipocampo do mamífero “armazena” memórias, particularmente as espaciais— e é por isso que os motoristas de táxi de Londres têm hipocampos maiores que a média.

 

5. No nível molecular, a depressão e outros transtornos mentais consistem em desequilíbrios de neurotransmissores – e é por isso que eles podem ser tratados com medicamentos que alteram a síntese, liberação, quebra ou recaptação de neurotransmissores.

 

Lembre-se de não reduzir tudo à neurotransmissores.

6. Sabe-se que o exercício físico melhora o humor e a cognição, pois intensifica circulação sanguínea, que por sua vez alimenta o cérebro.

 

7. Olhar é diferente de ver (…), porque os mecanismos correspondentes são diferentes, como mostrado esquematicamente na Fig. 17.1.

Outro exemplo bom:

A alfabetização diminui a capacidade de reconhecer rostos.

É uma descrição de algo que ocorre. Mas não te dá curiosidade para saber por que? O que uma coisa tem a ver com a outra? Se ficarmos só no nível mental, fica difícil de entender.

“Dehaene e colaboradores (…) explicam provisoriamente da seguinte forma: uma vez que a escrita é uma aquisição relativamente recente, “os processos de leitura devem invadir e ‘reciclar’ o espaço cortical devotado a funções mais antigas”.

Agora faz mais sentido, né?

Se você é um um estudante ou profissional da psicologia, pode estar sentindo medo de que a psicologia seja substituída pela neurociência. Pode ficar tranquilo.

“Já que explicar um fato é desvendar seus mecanismos subjacentes, a explicação de fatos mentais está a cargo da psicologia fisiológica, também chamada de neurociência cognitiva e afetiva. No entanto, isso não envolve microrredução, uma vez que processos neurais são influenciados por estímulos sociais.”

Pense na Psicologia de forma mais ampla. Aliás, comece a olhar para a ciência de forma mais ampla, e vá além da psicologia. Você não precisar ficar confinado a uma área do conhecimento.

“Submissão adoece

Um exemplo famoso da influência do meio social sobre o corpo humano é o estudo imunológico de Whitehall, que investigou as condições físicas e mentais saúde dos servidores públicos britânicos (…). Este estudo mostrou que a taxa de morbidade aumenta à medida que os níveis na hierarquia descem. O mecanismo é isto: A dependência aumenta o estresse, o que estimula a síntese de corticóides, que prejudicam os órgãos internos.

 

O funcionalista pula o nível intermediário e resume o Whitehall descobertas neste esquema:
Dependência↑ → Morbilidade↑.

 

Mas isso é apenas um dado, ainda que importante. Hume e seus seguidores teriam ficado satisfeitos com isso. Os neurocientistas, por outro lado, perguntaram por que uma sequência tão estranha deveria ocorrer: eles procuraram o mecanismo subjacente e encontraram parte dele, a saber:

 

↑Dependência → Estresse → ↑ Corticoides → ↓Imunidade → ↑Morbidade

Psiconeuroendocrinoimunologia é linda! (Apesar de ser um baita palavrão esquisito).

“funcionalistas desconsideram tudo o que não é mental, de modo que eles perdem as fortes interações entre os sistemas nervoso, endócrino e imunológico. Assim, a abordagem funcionalista empobrece seriamente as problemáticas psicológicas. A psicologia contemporânea, ao contrário, é uma ciência mista: é — em uma palavra — psiconeuroendocrinoimunosociologia.”

E você achou que seria impossível ter uma palavra ainda maior do que psiconeuroendocrinoimunologia, né?

“Essa síntese foi desencadeada pela hipótese filosófica de que os fatos mentais são processos cerebrais. Por sua vez, a investigação científica do mental no cérebro vivo levou à descoberta de que o cérebro é parte de um sistema biológico mais abrangente, que, por sua vez, está intimamente ligado ao sistema social.”

Este último ponto deixa evidente que falar de biologia não é reducionismo. Pelo contrário, pode ser expansionismo!

A mente não está solta no vácuo, mas está acontecendo em um cérebro. O indivíduo que tem esse cérebro não é só o cérebro, mas também seu corpo. E este corpo (incluindo o cérebro e a mente, claro) estão dentro de uma certa sociedade, dentro um certo período histórico. Pra nos entender completamente, precisamos olhar para todos estes níveis.

A Psicologia é um ciência da mente e do comportamento, mas também do cérebro. Em muitos casos, nem se sabe mais se o que se faz é psicologia ou neurociência. Psicólogos usam neuroimagem, neurocientistas falam de mente e de comportamento. Usa-se o termo psicobiologia como sinônimo de neurociência comportamental, e psicologia fisiológica também é chamada de neurociência cognitiva e afetiva, como o Bunge disse. Muitas vezes, nem se fala em psicologia ou neurociência, mas em ciências cognitivas, ciências afetivas, ciências comportamentais.

Então, a Psicologia explica mesmo?

Não importa. A psicologia, em si, não importa realmente. Ela é uma área de conhecimento e de atuação profissional, delimitada por questões didáticas, históricas, sociais, políticas etc. Do mesmo modo, não importa se a neurociência explica ou não.

A definição que Bunge dá para descrição e explicação também não é importante para o ponto que quero apresentar aqui. Não vejo problema em adotar a posição das múltiplas explicações. Neste caso, é possível dizer que falar do nível mental é uma explicação.

O problema é olhar exclusivamente para o nível mental, desconsiderando os outros níveis (biológicos, sociais etc). Quando fazemos isso, temos muitos limites e as chances de erro aumentam.

Já pensou se uma “explicação mental” não acompanha ou até contraria os outros campos do conhecimento? Como sustentar uma psicologia desligada das outras ciências? Vamos fingir que física, química, biologia não existem ou não nos afetam?

O que realmente importa é: nós conseguimos explicar?

O que importa é o conhecimento. E ele vem de várias áreas: psicologia, neurociência, filosofia, antropologia, sociologia, biologia, química, física, matemática, economia, geografia, história..

Eu sei, pode parecer assustador e intimidador. Mas também é fantástico e nos dá um poder enorme.

Agora, como vamos chamar essa “área”?

Talvez psiconeuroendocrinoimunosocioantropobiofisicogeo…ah, deixa quieto.

Vamos só seguir o conselho de uma sábio oriundo de uma civilização mais avançada do que a nossa, que já superou essas divisões entra as áreas de conhecimento:


O livro do Bunge de onde tirei as citações é este:

Só tem versão inglês e tá caro, mas se você tem condições, é uma boa.

 

About the Author

Tiago Azevedo
Tiago Azevedo

Doutorando, mestre e graduado em Psicologia. Especializando em Neurociências. Vi na internet o melhor meio possível para conversar sobre a mente e o comportamento humano. Acredito que o conhecimento científico pode (e deve) ser compartilhado, e não ficar limitado a laboratórios de pesquisa e consultórios de psicoterapia. Há anos trabalho no "Universo da Psicologia", um projeto de divulgação da Psicologia em várias plataformas (blogs, Youtube, podcast, redes sociais etc) que soma mais de 200.000 seguidores.

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